
Cadeira Nº 19
Américo Azevedo Neto

Biografia
Américo Azevedo Neto nasceu em Coroatá-MA, a 29 de outubro de 1943. É poeta, cronista, romancista, jornalista e teatrólogo. No final da década de 50 mudou-se para Recife, onde estudou teatro tendo como dos principais professores Procópio Ferreira. De volta ao Maranhão, foi bancário, secretário municipal e estadual de cultura; diretor de turismo em São Luís e diretor do órgão turístico do Nordeste. Por causa do teatro se aproximou do folclore. Na década de 70, buscando uma linguagem teatral que fosse eminentemente maranhense achegou-se à cultura popular. Fundou, em 1973, o Teatro de Universitários do Maranhão, atual Companhia Cazumbá de Teatro e Dança, nesse ano mesmo, escreveu, coreografou e dirigiu um espetáculo a que chamou Cazumbá – a ópera boi, uma adaptação do bumba-meu-boi maranhense para o teatro, palco italiano. Na Academia Maranhense de Letras, ocupa a Cadeira n0 19, como sucessor de Emílio Azevedo.
Bibliografia
1) Discurso de Américo Azevedo Neto. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís, vol. XIV, p. 21-28, ago., 1981.
2) Lembrança de Fedoca. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís, vol. XV p. 99-102, ago., 2016.
3) Bumba meu boi no Maranhão. São Luís: Ed. Alcântara 1983 (2. ed rev. e aumentada. São Luís: ALUMAR, 1997).
4) É possível que ainda seja azul. São Luís: Gráfica Minerva, 1995. (Crônicas)
5) Infelizmente Amém. São Luís: Estação Gráfica, s.d. (Poesias)
6) Festa, fogos, fogueira e fé. São Luís: Estação Gráfica, s.d. (Folclore)
7) História realmente real. São Luís: Space Gráfica, 2003.
8) Aluísio na copa de casa. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís: Edições AML, nº 32, p. 101-110, jan./mar., 2021.
9) Saudação de Américo Azevedo. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís: Edições AML, ano 91, nº 24, p. 29-42, out., 2010.
10) Saudação de Américo Azevedo a Ney Belo Filho. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís: Edições AML, ano 91, vol. 25, p. 251-262, dez., 2010.
11) Saudação de Américo Azevedo a Natalino Salgado Filho. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís: Edições AML, ano 92, vol. 27, p. 65-70, jun., 2016.
A publicar: O dia da posse (romance); Lidiodato (romance); Calça de veludo (contos); Cartas para uma jovem atriz (cartas); Cazumbá – o livro (autobiográfico); Porque mesmo (crônicas); Talvez até seja (crônicas); Três cantos (poesia).
Referências para estudo
1) Discurso de Saudação, por Barcelar Viana. Revista da Academia Maranhense de Letras. São Luís, vol. XIV, p. 29-34, ago., 1981.
2) ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS. Perfis acadêmicos. 5. ed. Pesquisa, organização e textos de Jomar Moraes. São Luís: Edições AML, 2014.
AH,
O BOI…
Ah,
o Boi!… o tempo se encarregou de esconder os seus inícios. De sua origem nada
se sabe. E tudo o que se possa dizer não passará de suposições ou de pretenso e
duvidoso conhecimento. Não há registros anteriores, e os mais velhos apenas
repetem: “quando me entendi já encontrei boi brincando assim”.
Zé Igarapé, quase noventa anos, brincante
aposentado, pouco acrescentava às informações. Apenas fazia um recuo
cronológico maior. Em suas palavras, gosto de descoberta e nascimento,
impressão causada mais por sua imagem que pelas informações dadas.
Zé Igarapé, prenhe de estórias, de fatos e de
datas já misturadas na sua memória de homem velho. Zé Igarapé contando casos,
mas impotente, também, para dissipar as sombras que envolvem o início.
Ah, o mistério de Zé Igarapé! De suas
palavras, vencendo a luta contra um distúrbio cardíaco, sons antigos de
matracas ainda virgens de mãos estranhas; Bumba-meu-boi feito e dançando, pura
e simplesmente, “para honra e glória do honroso e glorioso São João”; festas de
São João recendendo princípios: bois dançados à luz de grandes lamparinas espetadas
na ponta de longas varas. Através dos olhos de Zé Igarapé, como ficavam mais
bonitas as penas coloridas iluminadas só pelo fogo das lamparinas e da
fogueira, que por esse mundão todo de luz. O vermelho mais vermelho e o ardente
mais ardente ficavam. Era de ver-se, pelos olhos quase apagados de Zé Igarapé,
entre cantadores famosos, as desgarradas mais famosas ainda e que acabavam,
sempre, em vermelho: o sangue de um deles ou a rosa que o vencido ofertava ao
vencedor.
Tempos distantes, quando as mãos que batiam o
pandeiro ainda traziam das palmatórias dos feitores. Tempos antigos em que
aconteciam episódios românticos e poéticos como o do cantador que, reconvocado
para a tropeada, após haver sido expulso, empunhou o maracá e entrou na roda
cantando e chorando, com todo o cordão em respeitoso silêncio – só perturbado
pelas vozes das mulheres que rezavam baixinho, pagando a promessa pelo seu
retorno. Tempos de inúteis e infantis valentias, como a do pescador da Madre
Deus, por nome Zé-nos-Peito, que dançava no meio do povo, com a calça arriada,
a bunda exposta, esperando a palmada que iniciaria a briga.
Tempos de Bumba-meu-boi. Sem paetê e
canutilho, que isto é coisa de hoje. Fita, malacacheta, espelho e papel
colorido apenas, mas o mesmo som, a mesma estória, a mesma devoção a São João
(“Havia mais respeito pelo santo. Mais acato e mais cabeça baixa”) e,
basicamente, a mesma festa.
Muda o sabiá, mas a palmeira é a mesma.
… e nesse tempo, o bairro do João Paulo com
seus desafios sob as mangueiras, a espontânea festa em frente à antiga Capela
de São Pedro e a representação obrigatória no largo da Igreja de São João, tudo
isso – que agora é passado – ainda era um futuro distante.
E a brincadeira chega aos nossos dias
praticamente intocada, “por proteção de São João, que por outra forma, mudavam
o sistema”.
Chega, esse ato de amor, com a mesma febre das
matracas e as mesmas convulsões do tambor-de-fogo. Ainda, ao redor da fogueira,
se aquecem os pandeiros e as mãos nas madrugadas mais frias. Ainda se passa
figueira (“São João disse, São Pedro confirmou”) para padrinho ou madrinha ou
compadre e comadre. Ainda se dança para São João.
– Um dia, o santo saiu daqui de casa. Só ficou
a imagem. E tudo o que eu queria dele, havia de ir à Igreja de Sant’Ana, que
foi para onde se mudou. O senhor entendeu? O santo foi embora. Só ficou a
imagem. Foi preciso fazer um boi bonito. Não foi fácil. Os tempos estavam
difíceis, mas fizemos. E ele voltou.
No
depoimento do dono do boi, o misticismo e a crendice; no pé da índia nova, de
pernas e barriga de fora, apenas o prazer da dança; na mão que toca o
instrumento, a santa idolatria, a fé e o medo, a festa e a oração, o rosário e
a tiquira e – na Ilha – sob os coqueiros
e rangendo nas areias soltas dos caminhos, os pés que progridem, levando,
juntos, um boi e um santo, para honra e glória de ambos.
(AZEVEDO NETO, Américo. Bumba meu boi no Maranhão. 2.ed.
São Luís: ALUMAR, 1997, p. 20-22).