
Delinear a obra de um poeta não é uma tarefa simples, sobretudo se esse poeta possuir vastíssima obra e ver a necessidade de escrita “como uma questão de vida e morte.” De qualquer modo, tentaremos incursionar, ainda que parcamente, pelo estro (ou seria sestro?) poético de Nauro Machado.
A homérica obra nauriana transita por meandros sintáticos e linguísticos que (de um modo genial e demiurgo) nunca se repetem, e que são uma espécie de força motriz a jorrar sempre da mesma fonte – em alguns momentos – respeitando a forma; em outros, desconstruindo-a, mas sempre com o mesmo objetivo poético de uma quase tentativa de se auto-explicar: “É difícil o contato /entre mim e o meu ser…”
As imagens de um mundo em exercício de caos
Desde seu primeiro livro, Campo sem Base (1958), Nauro vem nos mostrando essa agônica empresa do desmembramento de si e isso está explícito nos títulos de suas obras que (em sua grande maioria) mostram que a alma é zoológica, necessita do divino, está presa na vigésima jaula, por estar no opus da agonia, mas que poderá encontrar a lamparina da aurora…
Contudo, essa aurora esperada pelo eu lírico choca-se com o peso de uma linguagem vingativa, que jorra sempre, carregada de pesos semânticos e sonoros; desta forma, essa rutilância é negada – na própria linguagem – pelo peso do eu lírico carregando a si mesmo, e que, multiplicado em si mesmo, precisa conviver e expressar a própria agonia que insiste em se manifestar pela força lírica (e porque não doentia) do poema, objetivando sempre um mesmo destino que é sempre “cavar o infinito” (com muito mais (des)motivos poéticos que o Dante Negro) que existe no poema-poeta (mais este que aquele?) dividindo as possibilidades mediúnicas e imagéticas do verbo: “Acuso o contemplar-te, sol de escombros, / porosa planta insana que se esbanja / no mundo. Na exigência da atenção, / feroz assalto de luzes subjugo, / na terra que assisto e reverbero. / […] / Fornalha do meu dia panteteio / meu lúcido desânimo, manhã, / viscoso líquido desse humor. / Tempo, cúmplice visão te constrói: / contemplar-me é forçoso nas nascentes / do tempo, minhas manhãs, meu nojo…”2
São Luís: Apicerum da clausura
Outro reflexo da linha única, apesar de visceral, do percurso interseccionista do sujeito, são as imprecações destinadas à São Luís, metaforizada na Tróia, portentosa, de um lado, como constante fonte de inspiração para o estro-sestro do eu lírico, mesmo que algumas vezes, inspiração “dionisíaca” que, de forma brilhante, disciplinada e original, acaba sempre sendo dominada pelo apolíneo linguístico, (mostrado em imagens surrealistas e em aliterações), mas que, de outro lado, é vista como uma terra destruída, esmagada e insuladora do próprio eu, como é mostrado nestes versos com aspectos simbolistas: […] Ó São Luís padrasto, cão, matilha / mostrando o ventre em monstruosa ilha! / Ó tu, defunta lepra renascida / para ser, toda em mim, a minha vida! / São Luís, porto-pó, pó já não póstumo, / por estar vivo em crucificada hóstia! / Ó pranto eterno, eterno canto, amém / do verbo efêmero e a ser meu também.
Dor: Testamento provincial
Fernando Pessoa afirmou que “o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.” A dor na poética nauriana, muitas vezes, é uma dor sinestesicamente vivida e literariamente verossímil, pois o não reconhecimento do poeta por parte da Tróia-Ilha é amargo, perceptível e profético. Nauro se multiplica poeticamente por São Luís, seus becos, casarões, barzinhos, sua história e a maioria de seus poemas são gerados ali, no meio do povo, comungando com a dor do povo; e a sua obra, mesmo com uma gênese marginal e simples, consegue ser fina e lapidada em imagens surrealistas e oximoros que poetizam essa dor do existir-pertencendo e do pertencendo – sem existência concreta definida, mas atemporal, que lembram mesmo Fernando Pessoa. Pessoa, multiplica-se pelos seus heterônimos, Nauro Machado se multiplica pela sua obra e linguagem: “O nada é ser memória de ninguém, / treva qualquer, qualquer tábua nenhuma / madeira morta para um morto também / serei memória pois de coisa alguma”.
Nos Parreirais de Deus
Nauro é o flâneur do século XXI, que espreita e esquadrinha o próprio funil do ser, mas que é achado pela solidão temática, muitas vezes, dividida poeticamente com o próprio Deus. Não o Deus barroco que punia pecados, Deus em Nauro é divinamente “limitado” porque limitadamente divino, uma hora reduzido a um recurso formal poético, outra como comungador das intempéries do eu lírico. Desta forma, o “Corpus Christi” é estendido ao Sol dos escombros da alma da obra, aparecendo como pisado, desnudo e solitário, em uma escatologia invertida semelhante àquela proposta por Augusto dos Anjos. Contudo, Nauro consegue ser mais percuciente e agônico na tessitura da página contínua (onde Deus é citado subrepticiamente) dividindo-se em sonetos, quartetos, dísticos, poemetos etc. De acordo com a teologia, Deus é uma trindade se manifestando em um só. Em O Baldio som de Deus (2015) a mesma Trindade agoniza, e o Criador parece provar da mesma angústia da criatura reduzida a pó. Teria Nauro, em seus momentos de jorro psicológico-poético, reduzido a Trindade também ao pó? “Esta é uma terra de sina aziaga, / da mãe madrasta a me trazer a praga / de uma Trindade morta em todos três, / ó São Luís, profunda e eterna mágoa / de quem recebe apenas, como fogo e água, / a maldição do Deus que em dor a fez.”
O reinício sempre ambíguo: o verbo que nunca morre(rá)
“O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio.” De acordo com Octávio Paz, a metáfora só encontra uma ressonância e um porque, quando entra em simbiose com o poeta refletindo-o, mascarando-o ou até mesmo anulando-o. Essa linguagem-metáfora em Nauro, já estava viva antes de encontrá-lo e permanece viva mesmo depois da morte do poeta – com sua grande quantidade de livros publicados em vida e com quatro livros a serem publicados postumamente. A palavra se fez guarida no universo nauriano, ressurgindo quando e onde queria. Dessa forma, o poeta constantemente era visto pela Tróia mexendo os lábios, e que, ao contrário do que pensava o senso comum e leigo, não se tratava de efeitos etílicos, mas da voz poética saindo-lhe das entranhas com ritmo estético completamente demarcado. Mesmo “matando” o ser e consumindo-o para que ressurgisse de forma multifacetada, a palavra sempre foi a norma que a alma deste poeta maranhense desejou obedecer. Por ela viveu, amou, sentiu nojo, experimentou, recriou-se, anulou-se e escreveu: “morre um pouco de mim no meu início ambíguo, a mente circunscreve o mundo à minha forma”…6
Infelizmente, Nauro nos deixou, mas seu legado poético jamais acabará e sua voz poética ainda persiste, sendo ouvida pela quantidade-qualidade de sua obra e pelos becos poéticos da Tróia-São Luís.